sábado, março 11, 2006

A vida de todos os dias...

Deixo à consciência de cada um o trecho 312 do Livro do Desassosego, de Bernado Soares, heterónimo de Pessoa...
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"Há dias em que cada pessoa que encontro e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos e, ou isolados ou ligando-se, formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuais, os desabituais que encontro, são dizeres para que me falta o dicionário mas não de todo o desentendimento. Falam, exprimem, porém não é de si que falam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.
Passando às vezes na rua, oiço trechos de conversas íntimas, e quase todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante daquele...
Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades traseiras do armazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no saguão que é a minha vida."

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